Hidráulica Moinhos de Vento, década de 1920/30. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
ALAMEDA MOINHOS
Moinho de histórias.
por Letícia Wierzchowski

Contar histórias para mim é um modo de entender a vida; de guardá-la, encapsulada em palavras e frases, para que, um dia, ao ser lida, volte a pulsar, renascida na imaginação do seu leitor. Pois tudo, tudo nesta vida são histórias. As pessoas, as casas, os bairros, os países são história. Os amores, os medos, as viagens. Tudo história.

Porto Alegre, cidade onde nasci, é uma história que dura já 252 anos. Mas, houve um tempo em que, de tão infante, nossa cidade nem bairros tinha. Possuía o seu “centro” e, ao redor dele, se iam espalhando sem muita lógica os arraiais – pequenos núcleos habitacionais que quase sempre nasciam ao redor de uma capela ou igrejinha. Nesses arraiais, havia moinhos, serrarias e matadouros, cujo funcionamento ia abastecendo a população das suas redondezas.

Com o bairro Moinhos de Vento, a história não foi diferente. Dizem que havia, no morro que hoje se chama Ricaldone, um grande moinho de vento. Este moinho no alto do morro tinha a óbvia função de produzir farinha para a região.

Mas, vamos com calma.

Não foi este moinho que deu nome ao bairro.

Acontece que, à altura de onde está hoje a Santa Casa de Misericórdia, havia um mui conhecido caminho chamado Estrada da Aldeia. Ali, quase à altura de onde hoje temos a rua Barros Cassal, um comerciante de alcunha “Barbosa Mineiro” instalou uma série de moinhos – depois disso, o famoso caminho passou a ser conhecido como Estrada dos Moinhos de Vento. O nome ficou. E agora sim: muitos anos depois, esta estrada que descia para os lados de onde agora temos a Mostardeiro e a Rua 24 de Outubro é que nomeou o bairro.

Mas saibam que os moinhos de Barbosa Mineiro foram todos postos abaixo por um decreto imperial – aconteceu na sangrenta época em que Guerra dos Farrapos assolava o Rio Grande e a capital da província resistia ao cerco republicano. Segundo os militares do Império, os tais moinhos de Barbosa Mineiro se prestavam como pontos de tiro alto aos inimigos farrapos que cercavam a cidade havia mais de ano. Foram ao chão os moinhos, foi ao chão a República Rio-grandense, mas ficaram-nos as histórias.

Voltemos ao passado.

Morro Ricaldone, década de 1953. Acervo Fototeca Sioma Breitman.

Por aqueles tempos da Revolução Farroupilha e depois ainda, o arrabalde que hoje é o bairro Moinhos de Vento não passava de um apanhado de chácaras, uma imensa área verde, onde Antônio José Gonçalves Mostardeiro haveria de construir a sua casa, a mais bonita de todas.

Antônio José Gonçalves Mostardeiro era um comerciante da região de Mostardas que, ainda jovem, soube ficar muito rico, e assim mudou-se para os arredores da capital. Foi ele presidente do Banco da Província e também fundou várias empresas de comércio. Sua chácara, portanto, era enorme, abrangendo terrenos que hoje pertencem ao bairro Moinhos e ao Rio Branco, a família Mostardeiro tinha ali até mesmo um minizoológico com lago cheio de cisnes, e nas suas terras circulavam pavões e veados; a casona da família recebeu o primeiro telefone de toda região, ainda no ano de 1886.

Antônio Mostardeiro casou-se com a baiana Laura Rasteiro, a “Dona Laura”, e o casal teve prole bastante grande – treze filhos. Dona Laura, mulher muito simples, criada bem longe das elites, veio para o sul e tornou-se senhora mui rica, mas jamais perdeu de vista suas origens. Era irreverente e organizava grandes bailes e saraus na famosa chácara dos Mostardeiro; dava também festas mistas, jamais sucedidas na cidade, onde afrodescendentes humildes conviviam em igualdade com os filhos abastados da principal elite porto-alegrense de então.

Dona Laura tinha ideias muito modernas para a época; depois da morte do amado marido (Mostardeiro faleceu em 1893), ela passou a oferecer grandes festas para organizações operárias – a cada dia 1 de maio, Dona Laura abria os seus “bosques do Moinhos de Vento” para que toda gente fizesse piqueniques pelos seus recantos; e ainda mais: ofertava aos muitos visitantes jogos e saraus de poesia nos seus jardins. A baiana era gregária e gostava de música: vez ou outra, contratava

Que história, que mulher. Mais uma de tantas mulheres que fizeram diferença no seu tempo e, ainda hoje, têm tanto a nos ensinar. E eu aqui, sentada à minha mesa, moro numa ruazinha que pertenceu ao terreno da família Mostardeiro, bem pertinho de onde ficava a casa grande, e me alegro; me alegro muito de saber que este chão foi lugar de festejos e território de igualdade entre as gentes. Nunca mais vou atravessar a Dona Laura sem lembrar desta história, sem reverenciar esta mulher.

Com muita razão, virou nome de rua, a dona Laura Rasteiro Mostardeiro; aliás, rua animada, sempre cheia de pessoas que seguem pro trabalho, que voltam do parque, que caminham pelo entorno arborizado do que, um dia, foram os seus lautos jardins. Mas o refúgio verde que daria lugar ao bairro Moinhos de Vento tem muitas histórias e transformou-se muitas vezes, foi chão de incríveis personagens de carne e osso, foi também testemunha de episódios marcantes.

Mais para além do que hoje é o Parcão, subindo a 24 de Outubro, que, naquele tempo, tinha apenas nove casas, foi que nasceu a Hydráulica Guahybense (grafia da época). Inaugurada no ano de 1904, a Hidráulica transformaria para sempre a região e seu entorno.

Chácara Mostardeiro, década de 1890. Acervo Fototeca Sioma Breitman.
Hydráulica Guahybense, década de 1900.
Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.

Dona Laura Mostardeiro ainda era viva, e deve ter ouvido falar da famosa Hidráulica. A região era um lugar tão inóspito que, quando a Guahybense instalara lá os seus reservatórios de água, uma caricatura de jornal da época mostrava patos, cobras e jacarés nadando livres nos seus tanques. No começo, a água da Hidráulica era captada do Guaíba e distribuída à população sem tratamento algum; às vezes, tão barrosa que nem para o banho se prestava.

Mas, 20 anos mais tarde, a Ulen and Company, empresa norte-americana, recebeu o aval do intendente Otávio Rocha e assumiu os reservatórios, começando a construir também o prédio da Hidráulica, inspirado na arquitetura do Palácio de Versalhes e nos seus famosos jardins – que Dona Laura infelizmente não teve tempo de conhecer.

A obra, com projeto arquitetônico de Cristiano de La Paix Gelbert, inaugurada em 1928, foi recebida com encantamento por toda a população de Porto Alegre, que passou a fazer seus passeios por ali, cruzando, fascinadas, as suas pontes e jardins. Na Hidráulica, ficava um dos únicos dez postos de gasolina existentes na capital no final dos anos 20, que também dispunha de uma “oficina telefônica”. Até mesmo as antenas da única emissora de rádio de então, a Rádio Sociedade Gaúcha (hoje, Rádio Gaúcha) estavam instalados na Hidráulica Moinhos de Vento. Ela era o progresso, era o encanto, era o lugar para onde afluíam os porto- alegrenses nas tardes de sol. Mas a Hidráulica teve sua utilidade costurada à vida da capital para muito além do seu estilo e da sua beleza.

Em 1941, quando a grande cheia elevou os níveis das águas do Guaíba, tomando boa parte da zona central e do que é hoje o Quarto Distrito, a população da capital teve de conviver com um severo racionamento de água. Na Hidráulica do Moinhos de Vento, formaram-se longuíssimas filas de pessoas que traziam panelas, jarros e garrafas a fim de abastecer suas casas. Já não havia mais a circulação de aguadeiros, muito comuns nos primeiros tempos da Guahybense, que vendiam água de fontes minerais dos arredores da cidade, e faltava água para muitas e muitas famílias. Os moradores do Moinhos que não conseguissem ficar na fila da Hidráulica podiam pedir socorro ao famoso empresário A.J. Renner, também habitante do bairro, e o único a ter um poço artesiano nas suas terras. A. J. Renner, homem moderno e vizinho generoso, ajudou várias famílias do bairro, fornecendo água para quem viesse lhe bater ao portão.

Hidráulica Moinhos de Vento, década de 1930. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.

Poucos anos depois, com o Guaíba serenado outra vez, a Hidráulica ganharia novo protagonismo em Porto Alegre. Eram os tempos da Segunda Guerra Mundial, e o mundo andava na ponta dos pés. Meu avô polonês tinha cruzado o Atlântico para lutar junto aos Aliados na Campanha Europeia contra o Eixo; mas, aqui em Porto Alegre, as pessoas também se preparavam para a guerra.

Na torre da Hidráulica do Moinhos de Vento, o ponto mais elevado da capital naquele tempo, foram instaladas sete cinzentas cornetas francesas gigantescas. As cornetas tinham a função de soar nas noites de blecaute, que eram sempre previamente anunciadas pelos meios de comunicação da época. Ao toque das enormes e barulhentas cornetas da Hidráulica, todas as luzes de todas as casas deveriam ser apagadas; a cidade de Porto Alegre mergulhava num profundo breu.

Havia também o temor de que algum aliado nazista solto pela capital do Rio Grande colocasse veneno nas águas dos reservatórios da Hidráulica; uma série de cuidados especiais foram postos em prática, e vigias noturnos circulavam, atentos, pelas adjacências do bairro e pelos bosques outrora tão frequentados por namorados. Se alguém com ares estranhos passasse pelas calçadas do entorno da Hidráulica, logo era enxotado dali por um guarda civil instruído pelo severo delegado Plínio Brasil Milano, que também era morador do Moinhos de Vento.

FALE CONOSCO