por Letícia Wierzchowski
Segundo o dicionário, esquina é o ângulo formado pelo encontro de duas vias, sejam elas ruas ou avenidas. Mas, para uma escritora como eu, a esquina da Padre Chagas com a Fernando Gomes, ali nos encantadores arredores da Hidráulica, também marca o encontro de duas vidas.
Todos sabemos que esta esquina é famosa, que é alegre, que as duas calçadas que se juntam justamente ali vivem repletas de bares, restaurantes e transeuntes animados. Atrevo-me até a dizer que quase todos nós temos uma memória, uma recordaçãozinha que seja pelos arredores desta esquina tão querida – um almoço com amigos, uma caminhada num domingo ventoso de abril, um chope ao final do expediente sob o sereno olhar dos jardins da Hidráulica e os passarinhos no arvoredo cantando, cantando, cantando a beleza dos dias e a delícia que é viver.
Mas quem foram esses dois homens que nomeiam o chão pelo qual nós, porto-alegrenses, tanto andamos? Quem foram Fernando Gomes e Padre Chagas? Homens cujas vidas mereceram homenagem no coração pulsante do bairro Moinhos de Vento? Por onde andaram até virarem, eles mesmos, caminho, rua, pedra e muro com endereço marcado, misturando-se assim às histórias cotidianas de todos nós?
Fernando Gomes e Padre Chagas, hoje costurados à geografia do Moinhos, talvez já se tenham apertado as mãos em algum momento de suas vidas – eu gosto de imaginar que isso aconteceu. Porém, é fato certeiro que Vicente Ferreira Gomes, pai de Fernando, esteve envolvido nas mesmas lutas que o padre Francisco das Chagas – ambos tinham vidas políticas intensas, eram revolucionários republicanos e ocuparam papéis importantes na cena da Guerra dos Farrapos.
A Revolução Farroupilha, história que tanto estudei para os meus romances, volta de novo a me dar a mão aqui nestas linhas, convidando-me a dançar sua milonga de coragens, de sangue e de guerra. Então vamos à dança do tempo: Vicente Gomes, pai de Fernando, tornaria-se farroupilha de alma no começo dos anos 1830 ao participar das reuniões liberais que aconteciam em segredo na capital da província, preparando o terreno para a Guerra dos Farrapos. Tenho comigo que, nestes encontros, cruzou e interagiu com o padre Francisco das Chagas.
Fernando Gomes, que tinha nascido em 1831, era um menino ainda de calças curtas quando Vicente, juiz municipal e deputado da província, atuou como Chefe de Polícia interino durante o ano em que os revolucionários farroupilhas conseguiram, com onerosos custos, ocupar e dominar Porto Alegre, expulsando daqui o governo nomeado pelo Imperador. O menino Fernando deve ter sentido muito orgulho do pai, convidado a assumir o posto pelo próprio General Bento Gonçalves da Silva.
Quanto ao padre Chagas, a batina não o impediria de seguir igual caminho. Após a proclamação da República-Riograndense, padre Chagas foi nomeado pelos republicanos Vigário Apostólico, e passou a negar obediência ao bispo do Rio de Janeiro. Ou seja, temos aqui uma esquina bastante revolucionária – gênese que marcaria este pedacinho do Moinhos, onde sempre se inventou moda: bares de calçada, noite animadíssima, o point noturno da cidade por muitos anos.
Mas, voltemos à história.
O envolvimento do pai, Vicente, com a Revolução Farroupilha, daria tintas tristes à adolescência de Fernando Gomes. Vicente acabou preso quando os imperiais retomaram o controle da capital e morreu aos trinta e três anos, em 1838. Fernando foi criado pela mãe, mulher corajosa, que levou a família adiante sozinha em plena guerra. Quanto a padre Chagas, participou como o deputado mais votado da Assembleia Geral que elaboraria a constituição republicana no ano de 1842, tanto que presidiu o encontro inaugural. Teve vida política bastante ativa, sobreviveu à guerra, e veio a morrer em 1865, aos setenta e sete anos.
Fernando Gomes estudou na Corte e voltou para o sul como professor em 1854, quando a revolução já tinha passado havia quase uma década. Lecionou numa escola particular e trabalhou num dos jornais da capital até lograr abrir a sua própria escola com a ajuda de um amigo que lhe emprestou fundos.
O Colégio Gomes – por cujas classes passaram grandes nomes da história gaúcha como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Assis Brasil e Pinheiro Machado – ficava na Rua da Praia, e seu terreno prolongava-se até a Rua do Arvoredo. Em 1864, com a escola em pleno funcionamento, explodiria como uma bomba na capital a notícia dos assassinatos cometidos pelo brasileiro José Ramos, sua mulher, a húngara Catarina Palse, e o açougueiro alemão Carlos Claussner. Nos recreios do colégio de Fernando Gomes, a criançada corria até o portão para espiar o lugar onde tinham ocorrido aquelas mortes. Os meninos do colégio apavoraram-se, todos comiam diariamente das linguiças fabricadas na Rua do Arvoredo.
Mas Fernando Gomes foi um excelso professor – muitos dos grandes nomes que passaram pelo nosso chão foram seus alunos, e o colégio Gomes foi o mais importante estabelecimento de ensino primário e secundário de Porto Alegre até as primeiras décadas do século 20. Fernando morreu em 1896; quando do seu falecimento, o próprio Júlio de Castilhos mandou um telegrama à viúva, informando que os custos do funeral do professor correriam por conta do Estado.
A bisneta de Fernando Gomes, a escritora e jornalista Célia Ribeiro, publicou um livro sobre o bisavô e o seu tempo. Célia brinca com a rua que, sob os auspícios deste nome, virou ponto badalado na moderna Porto Alegre dos nossos tempos, e escreve: “A pequena Fernando Gomes (…) ficou conhecida como Calçada da Fama. Fernando Gomes certamente gostaria de andar por sua rua, no final de tarde, de cartola, apoiado na bengala de cabo de prata, fumando seu charuto hamburguês.”
Dizem do professor Fernando Gomes que era um homem elegante, culto e moderno – de certeza iria gostar do “nosso” Moinhos de Vento. Padre Chagas, corajoso que foi, brigando com a Igreja por conta dos seus ideais políticos, também apreciaria um bom café nas ruazinhas do bairro. Imagino que teriam muito a conversar, esses dois. Histórias é que não faltariam.