Projeto do arquiteto Armando Boni para a residência de Guido Corbeta, na Rua Barão de Santo Ângelo. 1936, acervo CAU/RS.
BARÃO 428
Era uma vez uma casa.
por Letícia Wierzchowski

Uma casa é palco, é sonho erguido em pedra e tijolo. Também é história. Entre suas paredes, a casa guarda vidas, amores, noites, músicas e memórias. Das suas janelas, vê a cidade que se transforma incessantemente.

A casa é palco, mas, sim, também é sujeito.

Na Rua Barão de Santo Ângelo, entre as ruas Dinarte Ribeiro e Marquês do Herval, situa-se uma das casas mais simbólicas de Porto Alegre, um palacete que tem muita, muita história para contar. Uma residência que nasceu das mãos de um dos tantos imigrantes europeus que fizeram o nosso país.

Era uma vez um arquiteto italiano chamado Armando Boni. Natural da província de Módena, Boni estudara em Bolonha e em Parma. Foi em Parma que travou conhecimento com um veterinário de Porto Alegre que lhe falou da universidade local; no ano de 1910, Armando Boni desembarcou aqui em Porto Alegre com a intenção de lecionar na Escola de Engenharia, onde foi, de fato e por muitos anos, um dos professores. Em 1913, Boni voltou à Itália para casar, chegando de esposa e aliança no dedo à capital gaúcha no ano de 1914. Armando Boni traçou uma grande carreira, e foi o primeiro que se dedicou ao uso do concreto armado na cidade.

Aliás, Armando Boni fez muitas coisas por estes pagos.

Em 1926, concebeu a Concha Acústica do antigo Araújo Vianna; projetou o Palacinho, como é chamada residência do vice-governador do estado, o prédio sede da Livraria do Globo – e, entre outras, a casa encomendada pelo comerciante e construtor Guido Corbetta para a Rua Barão de Santo Ângelo, que foi erguida no ano de 1936.

Projeto do arquiteto Armando Boni para a residência de Guido Corbeta,
na Rua Barão de Santo Ângelo. 1936, acervo CAU/RS.
Loris Bothomé.

E agora, era uma vez o imigrante Elias Bothomé.

Elias era um comerciante de tecidos nascido em Zouk Mikael, no (naquele tempo) distante Líbano. Era mesmo uma época de grandes migrações e distâncias; assim como Boni, Elias viera de bem longe, e começara sua vida no sul do Brasil havia poucos anos.

Aliás, tudo “havia pouco” na vida de Elias Bothomé: pois ele era muito jovem e já tinha fortuna. Aos 20 anos, em 1941, Elias comprou a casa de Corbetta num arroubo amoroso: o palacete da Barão de Santo Ângelo foi o presente de casamento que o libanês deu à sua adorada noiva, Loris.

E foi lá que o casal iniciou sua vida. Era uma vez uma família feliz – na casa projetada por Boni, Elias e Loris criaram seus dois filhos, Clóvis e Jussara.

O presente de bodas do marido apaixonado era uma edificação elegante: a parte social, iniciada por um pequeno alpendre em arco, dava acesso à casa, dividida em duas linhas longitudinais. A primeira iniciava-se pelo hall, levando à escada de acesso ao pavimento superior, seguia-se o gabinete, lavabo, e lavanderia. A segunda tinha o fumoir, o living com lareira, a sala de jantar e a cozinha. No segundo andar, ficava a parte íntima dos Bothomé, os dormitórios e uma grande suíte com terraço

Elias e Loris ampliaram a casa alguns anos depois, fizeram garagem, instalaram um sistema de aquecimento para os frios invernos gaúchos. Lá, viveram épocas animadas. Lori e sua mãe, Nabia, fundadoras da União Monte Líbano, faziam uma intensa movimentação assistencial. Assim, a grande casa viu-se agitada por festas, jantares e chás que arrecadavam recursos para as obras de caridade. Conta-se que, ao lado da casa dos Bothomé, havia um terreno onde vicejava um enorme loureiro. Loris amava as folhas de louro, e sempre colhia dali um raminho, que entregava às suas visitas quando elas iam embora. Assim eu penso no palacete da Barão de Santo Ângelo, uma casa laureada, palco de vidas felizes.

Era uma vez uma casa, testemunha de um bairro, de uma rua que se transformou tantas vezes ao longo do tempo. Era uma vez uma casa que, quase centenária, foi promovida a patrimônio de Porto Alegre, e segue, seguirá viva colecionando matizes de primavera e o cálido sol dos invernos. Era uma vez uma casa que segue viva e fará novas memórias, misturando passado e presente. Criando futuros.

A casa é palco, mas, sim, também é sujeito.

Clóvis, Loris, Jussara e Elias na festa de 15 anos de Jussara Bothomé, 1965. Arquivo pessoal

FALE CONOSCO