Autorretrato de Araújo Porto-Alegre, 1823. Acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul
BARÃO 428
O homem que “viu” o Brasil.
por Letícia Wierzchowski

Quantas vezes cruzei a rua Barão de Santo Ângelo? Foram tantas as tardes que por ali passei; durante anos, praticava ioga num dos seus sobrados antigos; quando saía da aula, gostava de me sentar nos degraus da escada, e ficava ali olhando o arvoredo, as gentes que circulavam.

Uma rua é um pequeno país; eu ficava ali, espiando a vida da Barão de Santo Ângelo, vendo as nuvens no céu, os carros que passavam devagar. A Barão é uma rua serena, uma rua boa de olhar, e eu amo essa sua característica.

Sentada diante da escola de ioga, muitas vezes me perguntei quem tinha sido o homem que dera nome àquele pedacinho da cidade; quem fora, de fato, o Barão? Depois esta pergunta se perdia em meio às urgências do cotidiano.

Hoje, sei quem foi o Barão de Santo Ângelo.

Muito, muito antes de receber do Imperador D. Pedro II o título nobiliárquico, ele foi um menino que cresceu órfão de pai. Sua mãe, dona Francisca Antônia Viana, contraiu novas bodas, e logrou dar excelente educação ao filho, batizado Manuel José de Araújo – nome que ele levou por pouco tempo.

Ainda bem jovem, o filho de dona Francisca mudou-se do interior para a capital, queria muito estudar desenho; e mudou também o seu nome para Manuel de Araújo Porto-Alegre, em homenagem à cidade onde se reconheceu artista.

Anos mais tarde, foi para o Rio de Janeiro e lá estudou Belas Artes – era o aluno predileto do pintor francês Jean-Baptiste Debret. É bonito saber que esse artista, ainda um guri, deixou a distante Rio Pardo para se estabelecer na Corte, onde foi aluno e depois deu aulas, transformando o ensino de arte da época como professor da Academia de Belas-Artes. Manuel também foi nomeado pintor oficial da Câmara Imperial no ano de 1840. Do Rio de Janeiro, ele viajou pelo mundo; primeiro como artista e discípulo de Debret, pintando e escrevendo; depois como diplomata: foi cônsul do Brasil em Berlim e Dresden. Em 1867, assumiu o cargo de cônsul-geral do Brasil em Lisboa.

Escritor, pintor, professor, jornalista, ensaísta, arquiteto, diplomata e teatrólogo, não foi só um homem do seu tempo. Muito, mas muito mais do que isso: Manuel de Araújo Porto-Alegre fez o seu tempo.

Pedro I, 1826. Manuel de Araújo Porto-Alegre. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes.
Coroação de D. Pedro II (detalhe), 1845/1846. Manuel de Araújo Porto-Alegre. Acervo do Museu Histórico Nacional.

Segundo a historiadora Lilia Schwarcz, importante estudiosa da vida de D. Pedro II e do Império Brasileiro, integrante da Academia Brasileira de Letras, a monarquia brasileira seguiu um caminho original combinando a tradição europeia ao ambiente singular da ex-colônia – “… uma cultura que se construiu com base em empréstimos ininterruptos, os quais, no entanto, incorporou, adaptou e redefiniu ao justapor elementos externos a um contexto novo.

Pois, Manuel de Araújo Porto-Alegre foi um dos mais atuantes agentes da construção desta identidade brasileira. O homem que deu nome à “Barão”, nossa tão querida rua do Moinhos de Vento, é patrono da cadeira de número 32 da Academia Brasileira de Letras, inaugurada 18 anos após sua morte, referendando sua importante contribuição à nossa literatura. Foi artista versátil e pensante – seus desenhos, sua pintura, suas aulas, seus poemas, seu trabalho diplomático, suas charges (Manuel de Araújo Porto-Alegre é considerado o primeiro caricaturista do nosso país) ajudaram a dar uma “cara de Brasil” ao império emergente, finalmente solto das amarras de Portugal. Manuel de Araújo Porto-Alegre fez tanto, mas tanto, que é hoje considerado o fundador da história e da crítica da arte brasileira.

E eu ali, durante tantas tardes, sentada naqueles degraus, que tão pouco eu sabia deste homem?

Voltei à Barão dia desses. Voltei, andei por ali. Sabia então o muito que Manuel de Araújo Porto-Alegre fizera pela nossa cultura, esse patrimônio inalienável que um povo carrega consigo, no sangue, no coração.

E conversei com o Barão, assim meio aos cochichos, Ah, Manuel, Manuel.

Ele inaugurou com seus versos o Romantismo, ensinou-nos a amar o que é nosso, o que nós somos, esta gente, este chão tão vasto – mar, montanha, floresta, campo, caatinga, ouro e barro.

Ah, Manuel, Manuel.
Tu fazias o Brasil, e tudo, tudo era começo.

Manuel Araújo Porto-Alegre virou barão, virou história, e depois virou rua em Porto Alegre – em 1930, o prefeito Alberto Bins resolveu renomear essa via (até então chamada Visconde de Mauá), por ocasião da passagem dos restos mortais do importante gaúcho de Rio Pardo.

Ele, que veio para a capital como estudante e aprendiz de relojoeiro, já atento ao Tempo desde menino

Agora, és chão no teu chão, Barão.
És tempo que passa e muda tudo. Rua brasileira, Manuel. Rua de Porto Alegre.

Mata virgem, c.1850-1860. Manuel de Araújo Porto-Alegre. Coleção Martha e Erico Stickel. Acervo Instituto Moreira Sales

FALE CONOSCO