Hidráulica Moinhos de Vento
BARÃO 428
Tanto, tanto vento. O meu Moinhos.
por Letícia Wierzchowski

O Moinhos se costura às minhas histórias com o fio invisível do tempo – do meu tempo, dos anos tantos nos quais por ele circulo, apressada às vezes, mas sempre atenta às suas esquinas, jardins e varandas. Faço a minha vida pelo Moinhos, pelas suas ruas eu ando, cansada às vezes, para respirar dos meus personagens.

Sou porto-alegrense; de menina, o bairro era, para mim, o parque, o grande parque onde eu corria – com suas alamedas verdes, afagadas pela sombra do arvoredo, com seu lago repleto de patos e seu moinho de pás ao vento.

Eu corria por tudo, depois parava defronte ao moinho e, ofegante, sempre curiosa, olhava suas pás quietas e perguntava aos adultos, mas quanto vento já passou por aqui?

Minha mãe não tinha todas as respostas que eu queria, mas também tinha as suas histórias: filha de um imigrante polonês, engenheiro, a mãe vira de perto as transformações do bairro Moinhos de Vento. Foi meu avô, Jan Wierzchowski, um dos responsáveis pela enorme obra que entregou ao bairro a bela sede em estilo art nouveau do Clube Leopoldina Juvenil, num distante junho do ano de 1954. O avô Jan também daria outra contribuição à região, construiria o Teatro Leopoldina, o antigo Teatro da OSPA. A mãe gostava de contar, toda suspirosa, que fora a um grande espetáculo no Teatro Leopoldina (quiçá sua inauguração em outubro de 1963) e, adolescente ainda, vira Bibi Ferreira cantar Edith Piaf no palco recém-entregue aos porto-alegrenses.

Histórias de outros tempos e de um bairro que mora no coração das gentes dessa cidade austral. Um bairro que é patrimônio de todos nós, que por suas ruas andamos, sonhamos, crescemos, demos a mão a um amor, sentimos o frio Minuano dos invernos, vimos um entardecer vermelho descer sobre o casario, tingindo as calçadas de uma luz que só habita este nosso sul.

No dicionário, bairro é “cada uma das partes em que se divide uma cidade ou vila, para facilitar a orientação das pessoas e possibilitar a administração pública mais eficaz.” A lei 2022 do ano de 1959 encerra o bairro Moinhos de Vento nos seguintes limites: Rua Mostardeiro, desde esquina da Dr. Vale até esquina Coronel Bordini, Bordini sentido sul-norte até Marquês do Pombal; Marquês do Pombal até Travessa Carmem, e dela, numa linha imaginária seguindo a encosta norte do Morro Ricaldone até a Doutor Vale; e no sentido norte-sul até encontrar a Mostardeiro.

Jan Wierzchowski, 1943, integrou a Primeira Divisão Blindada Polonesa durante a Segunda Guerra Mundial, lutando ao lado dos Aliados na Campanha Europeia.
Pérgola da Praça Maurício Cardoso, década de 1950.

Eu nem consigo pensar este traçado, mas ele está lá, na fria letra da lei. Para mim, o bairro Moinhos de Vento respira e pulsa. E se move e se alarga, tão vivo quanto os seus moradores, patinado de histórias, de memórias – minhas, suas, de todos aqueles que por suas ruas pisaram.

Para mim, o Moinhos tem dimensões imaginárias tão vastas quanto imponderáveis. É o bairro onde criei meus filhos, onde eles se lançaram atrás das pombas gordas que bicavam o chão, e comeram pitangas numa esquina de primavera; bairro onde eu corria, pensando em Anita Garibaldi, cuja vida romanceava; bairro cheio de agoras e de ontens.

Qual foi o início dessa história, desse lugar tão querido de todos nós?

É difícil achar um início, pois, como escreveu Clarice Lispector, as coisas acontecem antes de acontecer. Mas, aqui nestas páginas, voltemos ao tempo do Império, quando Fernando de Freitas Travassos e sua esposa, Maurícia Cândida da Fontoura Freitas implantaram o Arraial de São Manoel em terrenos de sua propriedade, ligando a estrada do Moinhos de Vento à estrada Floresta.

Segundo os historiadores, que não leram Clarice Lispector, seria este o marco zero do bairro Moinhos – e ele tem até endereço: uma pequena elevação de terra em frente à atual Praça Maurício Cardoso, onde se colocou a pedra fundamental de uma capela no mês de fevereiro do ano de 1878.

A partir daí, alguns eventos confluíram, impulsionando o crescimento do novo bairro. Em 1893, a Carris Urbanos implantou bondes puxados a burro na Avenida Independência, a antiga estrada do Moinhos de Vento: uma modernidade para a via, que já contava então com 96 moradias – os bondes só se tornariam elétricos em 1908, aumentando ainda mais a circulação de toda a região

Um dos eventos mais importantes para o futuro bairro foi a abertura do Prado Independência, no ano seguinte à implantação dos bondes, 1894. O novo hipódromo (a capital já possuía outros três), tornou-se o espaço preferido da elite, recebendo até o público feminino, outrora avesso às apostas de cavalos. As mulheres também acorriam ao Prado porque ele era elegante e espaçoso, abrigando milhares de frequentadores. O Prado Independência seria o coração do Moinhos até o ano de 1959, quando foi removido para o Cristal. No seu lugar, nasceria o Parque Moinhos de Vento – onde engendrei tantas, mas tantas histórias, que talvez ele seja um bom narrador da minha vida. Mas, voltemos ao bairro.

Prado Independência, década de 1900. Virgílio Calegari. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo

Sim, diria eu hoje à menina de outrora: muito vento passou por aqui, muito, muito vento.

E um dos maiores sopros de progresso da região seria a construção da Hidráulica. A enorme obra começou em 1904, mas só foi inaugurada no ano de 1928: a Hidráulica tinha um moderno sistema de captação e filtragem de águas com casas de filtro e reservatórios que se harmonizavam no interior de jardins de inspiração francesa. Havia até uma fonte luminosa! O lugar logo virou atração, e encheu-se de visitantes que aproveitavam a beleza da sua grande área verde, pontilhada de bancos.

Por conta da revolucionária estação de tratamento de águas, muitas ruas foram abertas nas suas proximidades, aumentando o traçado da região. Sete anos depois de inaugurada a Hidráulica, já em 1935, a água tratada no Moinhos de Vento abastecia não apenas a região central de Porto Alegre, mas também os seus subúrbios.

Enquanto os bondes elétricos começavam a circular e as águas ganhavam sua moderna estação de tratamento, a Avenida Independência encheu-se de palacetes – construções de ricos comerciantes e industriais da cidade, que lentamente foram se espalhando, descendo até chegar ao coração do Moinhos.

Assim, em meados dos anos 1920, o bairro já era considerado um lugar aristocrático, palco de grandes e elegantes festas, bailes e saraus – e habitado por famílias importantes da Capital, como os Mostardeiro, os Gerton, os Petersen, os Chaves Barcellos, os Bins e outras tantas.

Em 1921, por sugestão de um famoso morador do bairro, Alberto Bins, a Sociedade Germânia também veio se instalar no Moinhos de Vento, ocupando um belíssimo prédio neoclássico situado quase em frente à Praça Júlio de Castilhos. A população germânica do bairro também trouxe outra importantíssima contribuição, o Hospital Alemão, atual Moinhos de Vento, cuja construção começou em 1912, numa área que, segundo o jornal Correio do Povo, ficava no “arrabalde do Moinhos de Vento”.

Em 1928, o mesmo Correio do Povo faz alusão à “febre de construção” em Porto Alegre, e destaca o bairro Moinhos de Vento como o local preferido para a edificação de magníficos prédios.

Hidráulica Moinhos de Vento, década de 1920/30. Autor desconhecido. Coleção Dr. João Pinto Ribeiro Netto. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
Hospital Moinhos de Vento

E, então, o Moinhos, que tinha nascido tão humilde, subúrbio apenas, tornava-se um lugar de gente rica, culta, importante. Mas o bairro sempre abraçou a todos com acolhimento e, pelas suas ruas e alamedas em fervorosa e constante transformação naquelas primeiras décadas do século XX, circulava toda classe de gente rumo ao trabalho ou a algum divertimento - um picnic na Hidráulica, uma corrida de cavalos. Também passavam os namorados de mãos dadas, as mocinhas com suas mães atentas, e os rapazes que gostavam de futebol – pois, em 1904, um grupo de descendentes germânicos fez um empréstimo no Banco Alemão, e comprou um terreno de três hectares no “Bosque do Moinhos de Vento”. A área, situada no sopé da íngreme ladeira Mostardeiro, receberia o primeiro campo do Grêmio, depois denominado Estádio da Baixada. Em 1918, o Grêmio já tinha uma belíssima sede social situada em frente à Avenida Dona Laura e ao campo de futebol, e só sairia dali em 1943.

Assim, embora considerado “bairro de gente sofisticada”, venho aqui nestas linhas emotivas, reivindicar o Moinhos para todos, todos nós porto-alegrenses, de nascimento ou de coração, todos que o amamos de um modo ou outro, que encontramos aqui um endereço ou uma mesa cativa, o sorriso de um maître ou o médico especialista; a sombra das alamedas do parque ou um chope bem gelado no meio da tarde de sábado.

Moinhos de Vento, onde meu avô polonês, que chegou aqui penduradinho na terceira classe de um navio, deixou a sua marca; Moinhos de Vento das crianças que correm por tuas praças, dos vendedores de fruta e de flores, da gente que sorri por tuas calçadas, vindas de todos os quadrantes da cidade em busca de um pouco de riso, de alguns brindes, de um banco sob jacarandás, de silêncio para ler o Érico, o Quintana.

Moinhos de Vento, arrabalde de tantos anos, de bois e bondes e carros elegantes, Moinhos dos caminhantes, Moinhos de bicicleta, quando eu pedalava pelas tuas ruas, de dentes de leite, em busca do roxo dos teus jacarandás.

Moinhos de Vento, chão afetivo desta escritora, tu que pensou gentes junto comigo enquanto eu corria, engendrando histórias.

Moinhos de Vento, moinho do tempo. Um pouco de mim, muito de Porto Alegre.

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