por Letícia Wierzchowski
Eu corri por muitos anos na minha vida, sempre serpenteando pelas ruazinhas do Moinhos de Vento. Correndo, passava todos os dias na frente do casarão da Santo Inácio, 229.
Sempre gostei desta casa, sempre gostei desta rua, e a minha simpatia tem um motivo literário – o escritor Ignácio de Loyola Brandão, batizado em nome do santo fundador da Companhia de Jesus, é uma das vozes brasileiras que mais admiro. Correr na calçada homônima, sombreada de árvores, um canto tão quieto em meio ao alarido da cidade, me trazia paz.
Às vezes, passando pela Santo Inácio, eu diminuía o ritmo por alguns momentos, caminhava, olhava os mosaicos de luz e sombra que o arvoredo fazia no chão; olhava as gentes na sua faina cotidiana – tirar o lixo, levar o cachorro a passear, varrer as flores dos jacarandás que colorem as nossas calçadas na primavera. Passava por ali, encantada, sem saber que aquele casarão, já quieto, com suas janelas fechadas como pálpebras de alguém que dorme, tinha tanta, mas tanta história para contar.
Agora, já não corro mais, mas ainda passo por ali frequentemente. E, numa das últimas vezes, parei diante da construção. Eu já sabia do passado que a casa discretamente guardava – a grande casa quieta, iluminada na noite de outono. Bonito como um relicário, o casarão estava ali, inocente de suas origens, palco de amores, de risos, de bailes, de crianças crescendo; não sabia ter nascido do encontro de dois homens na coberta de um navio que cruzava os oceanos no rumo da Alemanha.
Mas foi assim mesmo, um encontro num navio foi a gênese do casarão de número 229 da rua Santo Inácio. Era, então, o entreguerras, e Carlos Barth Júnior, empresário dono da famosa loja “A Brasileira” no centro de Porto Alegre, morador do Moinhos de Vento, procurava alguém que lhe erguesse uma nova e mais ampla residência. Nesta viagem para a Europa, Barth conheceu o arquiteto Karl Adolf Heinrich Siegert, e achou o homem que necessitava.
Karl Siegert tinha o métier no sangue; seu pai fora professor de Arquitetura na Faculdade de Colônia, e Karl era, então, a segunda geração com formação superior na família Siegert, coisa rara naqueles tempos. Além disso, era um homem com um passado que daria um romance: conta-se que viera para o Brasil após o final da Primeira Guerra por conta de um coração partido. Uma história cujos detalhes ninguém sabe exatamente – coisa comum num tempo de viagens sem volta e vidas partidas ao meio. Mas parece que Karl Siegert fora ferido no front de guerra, e passara o último ano do conflito num hospital, lutando pela vida. Quando finalmente voltou à Alemanha, após uma decepção amorosa, Karl decidiu tentar um futuro no Novo Mundo. Se veio casado ou divorciado da primeira esposa, ninguém o sabe – a história se perdeu no silêncio dos anos. O que sabemos é que aceitou a incumbência que Carlos Barth Júnior lhe deu naquele encontro transatlântico e projetou-lha a nova mansão no bairro Moinhos de Vento.
A magnificência da construção rendeu o que falar: foi amplamente louvada pela imprensa da época, que se encantou com o imenso jardim, em cujos verdes vicejava um lago, com a capelinha em estilo romano, e a imponência das paredes de mármore da casona de três andares.