Hidráulica Moinhos de Vento, 1970. Léo Guerreiro e Pedro Flores. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
MARQUÊS 650
Aquilo que o vento jamais levará.
por Letícia Wierzchowski

Escrever sobre o bairro Moinhos de Vento e sobre suas ruas, para uma romancista como eu, é abrir a Caixa de Pandora. Há tanta coisa a ser narrada, tantas histórias encrustadas nas pedras que calçam esses caminhos, tantos beijos de amor perdidos nas esquinas do tempo – um bairro é o apanhado de milhares de vidas, séculos de paixões, guerras, tempestades, crises políticas, revoluções, nascimentos e mortes.

Cada rua guarda uma história. A pequena e suave Marquês do Herval, ruazinha doce pela qual passo diariamente, revelou-se para mim um tesouro de narrativas. O General Osório, que já cruzou pelas páginas do meu romance Um farol no pampa – homem corajoso, de coração honrado, tinha um título nobiliárquico que me escapava – era o Marquês da nossa rua querida; rua na qual palpita a sede do Clube Leopoldina Juvenil, cuja construção foi feita, lá nos anos 1960, pelo meu avô engenheiro, Jan Wierzchowski.

É bonito ver estas costuras de cotidiano e de passado. O bairro mais charmoso da capital gaúcha guarda incontáveis narrativas e segredos escondidos nas suas esquinas. E, assim como eu, muitos outros escritores gaúchos andaram por estas ruas, e aqui sorriram, e aqui sonharam, e aqui inventaram suas histórias.

A escritora Cíntia Moscovich é uma das moradoras da Marquês do Herval – creio que todos os seus livros nasceram ou foram escritos bem ali, pertinho da Casa Strassburger; decerto, vizinhos que foram, as famílias tinham suas histórias em comum, e alguma das páginas da Cíntia brotou do que ela viu ou viveu na ruazinha sombreada que risca o Moinhos de Vento, da Santo Inácio até a Coronel Bordini

Outro ilustre escritor que morou no bairro foi Erico Verissimo. No final da década de 30, Erico e sua esposa, Mafalda, viviam na Avenida Quintino Bocaiúva; e foi aqui no Moinhos de Vento, em casa mesmo, que nasceu o nosso maior cronista, Luis Fernando Verissimo.

Erico Verissimo e Henrique Bertaso nos escritórios da Editora Globo, 1965.
Livraria O Globo e seu proprietario Sr Bertaso, decada de 1910.

Na casa que Erico e Mafalda dividiam, alguns nomes famosos da nossa cultura se hospedaram; do mundo das letras, o mais conhecido foi o Jorge Amado. Era um tempo em que Amado fugia das perseguições políticas do Estado Novo por conta da sua filiação ao Partido Comunista, e os pagos gaúchos, mais especificamente o agradável bairro do Moinhos de Vento, com suas tardes na Hidráulica e as corridas de cavalos no Prado Novo, devem ter parecido aprazíveis e discretas para o escritor baiano.

Saberia ele que, por estes mesmos tempos, o “Doutor Getúlio” também costumava dar as suas caminhadas pelo Moinhos quando estava de passagem pela capital gaúcha? Getúlio Dornelles Vargas não precisava de segurança para seus passeios pelas silentes calçadas do Moinhos de Vento, e era visto frequentemente na Padre Chagas, às vezes na companhia de seu pai, o pecuarista Manoel Vargas. Eles faziam a volta na quadra, caminhavam pela Hilário Ribeiro e pela Barão de Santo Ângelo até chegarem à Luciana de Abreu, número 106. Ali, vivia outro morador famoso do bairro, o irmão do presidente, Spartaco Vargas, que tinha se mudado para o Moinhos de Vento no começo dos anos 30 com sua esposa.

Mas creio que Jorge Amado e Getúlio Vargas jamais se cruzaram pelo Moinhos, o que daria, talvez, um bom conto. Amado passaria suas temporadas com os Verissimo, e decerto eles falariam de música, de livros e de viagens. E ambos seguiriam escrevendo seus belos romances.

Afinal, por este tempo, vivendo no Moinhos, Erico Verissimo publicaria muitos títulos, Música ao Longe, Um lugar ao sol e As aventura do avião vermelho (livro que marcou a minha infância). Foi morando no bairro que Erico também escreveria Olhai os lírios do campo, seu romance lançado em 1939 pela Editora Globo.

Olhai os lírios do campo seria o primeiro grande sucesso de Erico, uma verdadeira virada na sua carreira de escritor. Segundo o próprio, a repercussão do livro foi tão grande “que teve a força de arrastar consigo os romances anteriores”, todo publicados pela Editora Globo em tiragens bem modestas.

O sucesso de Erico Verissimo seria mais um golaço da Editora Globo. Acontece que Henrique Bertaso, um dos nomes mais notáveis no campo da literatura aqui no sul, era, além de amigo pessoal de Erico Verissimo, também morador do bairro Moinhos de Vento.

Bertaso era o proprietário da Livraria e Editora do Globo, que fez história nas páginas gaúchas e chegou a ser a segunda maior casa editorial de todo o país. O próprio Erico, durante certa fase da vida, trabalhou na livraria e editora do amigo Bertaso, dirigindo por oito anos a Revista do Globo – publicação quinzenal de grande circulação que contou, entre seus colaboradores, com nomes como Mário Quintana, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade

O Moinhos de Vento, além de bonito, também era um bairro com moradores que faziam cultura. Paulo Francis, um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro, escreveu certa vez, Ninguém pode ser considerado culto no Brasil se não lê os livros editados pela Globo.

Moinhos de Vento, década de 1920/30. Autor desconhecido. Coleção Dr. João Pinto Rbeiro Netto. Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.

Ah, quisera eu andar pelas ruas do bairro numa tarde qualquer e cruzar com Henrique Bertaso, Erico Verissimo e Jorge Amado numa das esquinas ensolaradas do Moinhos de Vento. O bairro, habitado por alemães lá no começo do século XX, já tinha, pela metade dos anos 50, entre seus moradores, alguns bons representantes da classe artística e cultural, mas ainda guardava sua aura original, tanto que o próprio Erico Verissimo disse certa vez, Foram os alemães que ensinaram o gaúcho a morar bem.

O Moinhos de Vento também aparece nas páginas de Moacyr Scliar em seu conto História porto-alegrense. É no bairro que vai viver a personagem narradora, ex-balconista da Cidade Baixa e amante do filho de um conhecido fazendeiro gaúcho. O rapaz instala a moça num “famoso casarão do Moinhos de Vento”, escandalizando a sociedade local e todos os grandes fazendeiros que, à época, moravam na região.

O Moinhos de Vento também é o pátio do escritor Tabajara Ruas, que tem seu endereço gaúcho ali na divisa com o bairro Floresta. Outro grande nome das páginas sulistas, autor de livros como Os varões assinalados, romance furiosamente belo sobre a Revolução Farroupilha, Tabajara Ruas é visto com frequência circulando por aqui, sentado nos cafés do bairro, matutando histórias ou planejando filmes, posto que também é diretor de vários longa- metragens.

Moinhos de Vento, cheio de ruas recheadas de histórias reais, tão lindas que dariam bons romances, como a história da Casa Strassburger, mas também moinho de ficções que marcaram a nossa literatura. Por tuas ruas arborizadas, quantos escritores passaram, pensando personagens e dramas?

Outro famoso gaúcho das letras que costumava passear pelo bairro, era Mário Quintana. Ele vinha aos finais de semana, acompanhado de amigos, visitava os cafés da região e passeava a passos miúdos nas alamedas do Parque Moinhos de Vento. Creio que alguma das suas rimas brincalhonas deve ter nascido por estes caminhos ensolarados. Quintana, que era muito amigo de Erico Verissimo, inclusive corrigiu-lhe o prumo à época em que Erico dava nome ao seu mais importante romance – pensava chamar sua trilogia de O Vento e o tempo, mas o poeta sugeriu-lhe a inversão: O tempo e o vento.

De tempo e de vento também é feito o bairro Moinhos; de casarões antigos, de tijolos e mármores e granitos, de flores passageiras, de ruas de paralelepípedos e jardins bem cuidados; mas também de palavras, de histórias, de escritores que as contaram, registrando em seus livros um pouco daquilo que não se vê, daquilo que não se sabe, daquilo que apenas sentimos – o rio subterrâneo desta vida.

As ruas mudam, os bairros se transformam, ficam as histórias. É como escreveu Quintana em um dos seus mais belos poemas, No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o cheiro que tinha um dia o próprio vento.

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